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"A Cidade e as Serras", Capítulo X, de Eça de Queirós

"A Cidade e as Serras", Capítulo X, de Eça de Queirós

Update: 2021-03-31
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Décimo capítulo, em audiolivro, do romance “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós.

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“A Cidade e as Serras” é um desenvolvimento do conto “Civilização”, cuja publicação em livro ocorreu em 1901, já depois da morte do autor. No romance é relatada a história de Jacinto, tendo como narrador José Fernandes, um amigo fraternal. Jacinto nasceu e viveu toda a sua vida num palácio dos Campos Elísios, em Paris. Apesar de rodeado de conhecimento, de tecnologia e de luxo, vive aborrecido e decide regressar a Tormes, na região do Douro.


TRANSCRIÇÃO

Numa dessas manhãs — justamente na véspera do meu regresso a Guiães —, o tempo, que andara pela serra tão alegre, num inalterado riso de luz rutilante, todo vestido de azul e ouro, fazendo poeira pelos caminhos, e alegrando toda a Natureza, desde os pássaros aos regatos, subitamente, com uma daquelas mudanças que tornam o seu temperamento tão semelhante ao do homem, apareceu triste, carrancudo, todo embrulhado no seu manto cinzento, com uma tristeza tão pesada e contagiosa que toda a serra entristeceu. E não houve mais pássaro que cantasse, e os arroios fugiram para debaixo das ervas, com um lento murmúrio de choro.

Quando Jacinto entrou no meu quarto, não resisti à malícia de o aterrar:

— Sudoeste! Gralhas a grasnar por todos esses soutos… Temos muita água, sr. D. Jacinto! Talvez duas semanas de água! E agora é que se vai saber quem é aqui o fino amador da Natureza, com esta chuva pegada, com vendaval, com a serra toda a escorrer!

O meu Príncipe caminhou para a janela com as mãos nas algibeiras:

— Com efeito! Está carregado. Já mandei abrir uma das malas de Paris e tirar um casacão impermeável… Não importa! Fica o arvoredo mais verde. E é bom que eu conheça Tormes nos seus hábitos de Inverno.

Mas como o Melchior lhe afiançara que «a chuvinha só viria para a tarde», Jacinto decidiu ir antes de almoço à Corujeira, onde o Silvério o esperava para decidirem da sorte de uns castanheiros, muito velhos, muito pitorescos, inteiramente interessantes, mas já roídos, e ameaçando desabar. E, confiando nas previsões do Melchior, partimos sem que Jacinto se vestisse à prova de água. Não andáramos porém meio caminho, quando, depois de um arrepio nas árvores, um negrume carregou, e, bruscamente, desabou sobre nós uma grossa chuva oblíqua, vergastada pelo vento, que nos deixou estonteados, agarrando os chapéus, enrodilhados na borrasca. Chamados por uma grande voz, que se esganiçava no vento, avistámos num campo mais alto, à beira de um alpendre, o Silvério, debaixo de um guarda-chuva vermelho, que acenava, nos indicava o trilho mais curto para aquele abrigo. E para lá rompemos, com a chuva a escorrer na cara, patinhando na lama, contorcidos, cambaleantes, atordoados no vendaval, que num instante alagara os campos, inchara os ribeiros, esboroava a terra dos socalcos, lançara num desespero todo o arvoredo, tornara a serra negra, bravamente agreste, hostil, inabitável.

Quando enfim, debaixo do vasto guarda-chuva com que o Silvério nos esperava à beira do campo, corremos para o alpendre, nos refugiámos naquele abrigo inesperado, a escorrer, a arquejar, o meu Príncipe, enxugando a face, enxugando o pescoço, murmurou, desfalecido:

— Apre! que ferocidade!

Parecia espantado daquela brusca, violenta cólera de uma serra tão amável e acolhedora, que em dois meses, inalteradamente, só lhe oferecera doçura e sombra, e suaves céus, e quietas ramagens, e murmúrios discretos de ribeirinhos mansos.

— Santo Deus! Vêm muitas vezes assim, estas borrascas?

Imediatamente o Silvério aterrou o meu Príncipe:

— Isto agora são brincadeiras de Verão, meu senhor! Mas há-de Vossa Excelência ver no Inverno, se Vossa Excelência se aguentar por cá! Então é cada temporal, que até parece que os montes estremecem!

E contou como fora também apanhado, quando ia para a Corujeira. Felizmente, logo de manhã, quando sentiu o ar carrancudo e as folhinhas dos choupos a tremer, se acautelara com o chapéu de chuva e calçara as suas grandes botas.

— Ainda estive para me abrigar em casa do Esgueira, que é um caseiro de cá. Aquela casa, ali abaixo, onde está a figueira… Mas a mulher tem estado doente, já há dias… E como pode ser obra que se pegue, bexigas ou coisa que o valha, pensei comigo: «Nada, o seguro morreu de velho!» Meti para o alpendre… E não passara um credo quando lobriguei a Vossa Excelência… Coisa assim!… E o sr. D. Jacinto é voltar para casa, e mudar-se, que temos um dia e uma noite de água.

Mas, justamente, a chuva começara a cair perpendicular, de um céu ainda negro, onde o vento se calara; e para além do rio e dos montes havia uma claridade, como entre cortinas de pano cinzento que se descerram.

Jacinto repousava. Eu não cessara de me sacudir, de bater os pés encharcados, que me arrefeciam. E o bom Silvério, passando a mão pensativa sobre o negrume das suas barbas, reflectia, emendava os seus prognósticos:

— Pois, não senhor… Ainda estia! Nunca pensei. É que tornejou o vento.

O alpendre que nos cobria assentava sobre duas paredes em ângulo, de pedra solta, restos de algum casebre desmantelado, e sobre um esteio fazendo cunhal. Nesse momento só abrigava madeira, um cuculo de cestos vazios, e um carro de bois, onde o meu Príncipe se sentara, enrolando um cigarro confortador. A chuva desabava, copiosa, em longos fios reluzentes. E todos três nos calávamos, naquela contemplação inerte e sem pensamento, em que uma chuva grossa e serena sempre imobiliza e retém olhos e almas.

— Ó sr. Silvério, — murmurou lentamente o meu Príncipe — que é que o senhor esteve aí a dizer de bexigas?

O procurador voltou a face surpreendido:

— Eu, Excelentíssimo Senhor?… Ah sim! a mulher do Esgueira! É que pode ser, pode ser… Não imagine Vossa Excelência que faltam por cá doenças. O ar é bom. Não digo que não! Arzinho são, aguazinha leve, mas às vezes, se Vossa Excelência me dá licença, vai por aí muita maleita.

— Mas não há médico, não há botica?

O Silvério teve o riso superior de quem habita regiões civilizadas e bem providas.

— Então não havia de haver? Pois há um boticário, em Guiães, lá quase ao pé da casa aqui do nosso amigo. E homem entendido… o Firmino, hem, sr. Fernandes? Homem capaz. Médico é o dr. Avelino, daqui a légua e meia, nas Bolsas. Mas já Vossa Excelência vê, esta gentinha é pobre!… Tomaram eles para pão, quanto mais para remédios!

E de novo se estabeleceu um silêncio, sob o alpendre, onde penetrava a friagem crescente da serra encharcada. Para além do rio, a prometedora claridade não se alargara entre as duas espessas cortinas pardacentas. No campo, em declive diante de nós, ia um longo correr de ribeiros barrentos. Eu terminara por me sentar na ponta de um madeiro, enervado, já com a fome aguçada pela manhã agreste. E Jacinto, na borda do carro, com os pés no ar, cofiava os bigodes húmidos, palpava a face, onde, com espanto meu, reaparecera a sombra, a sombra triste dos dias passados, a sombra do 202!

E, então, surdiu por trás da parede do alpendre um rapazito, muito rotinho, muito magrinho, com uma carita miúda, toda amarela sob a porcaria, e onde dois grandes olhos pretos se arregalavam para nós, com vago pasmo e vago medo. Silvério imediatamente o conheceu.

— Como vai a tua mãe? Escusas de te chegar para cá, deixa-te estar aí. Eu ouço bem. Como vai a tua mãe?

Não percebi o que os pobres beicitos descorados murmuraram. Mas Jacinto, interessado:

— Que diz ele? Deixe vir o rapaz! Quem é a tua mãe?

Foi o Silvério que informou respeitosamente:

— É a tal mulher que está doente, a mulher do Esgueira, ali do casal da figueira. E ainda tem outro abaixo deste… Filharada não lhe falta.*

— Mas este pequeno também parece doente! — exclamou Jacinto. — Coitadito, tão amarelo… Tu também estás doente?

O rapazito emudecera, chupando o dedo, com os tristes olhos pasmados. E o Silvério sorria, com bondade:

— Nada, este é sãozinho… Coitado, assim amarelito e enfezadito porque… Que quer Vossa Excelência? Mal comido, muita miséria… Quando há o bocadito de pão aquilo é para o rancho. Muita fomezinha, muita fomezinha.

Jacinto pulou bruscamente da borda do carro.

— Fome? Então ele tem fome? Mas há aqui fome?

Os seus olhos rebrilhavam, num espanto comovido, em que pediam, ora a mim, ora ao Silvério, a confirmação desta miséria insuspeitada. E fui eu que esclareci o meu Príncipe:

— Está claro que há fome, homem! Tu imaginavas que o Paraíso se tinha perpetuado aqui nas serras, sem trabalho e sem miséria… Em toda a parte há pobres, mesmo na Austrália, nas minas de ouro. Onde há trabalho há proletariado, seja em Paris, seja no Douro…

O meu Príncipe teve um gesto, de aflita impaciência:

— Eu não quero saber o que há no Douro. O que eu pergunto é se aqui, em Tormes, na minha quinta, dentro destes campos que são meus, há gente que trabalhe para mim, e que tenha fome, e criancinhas, como esta, esfomeadas? É o que eu quero saber.

O Silvério sorria, respeitosamente, ante aquela cândida ignorância das realidades da serra:

— Pois está bem de ver, meu senhor, que há aqui na quinta caseiros que são muito pobrinhos — quase todos. Isso vai por aí uma miséria, que se não fosse alguma ajuda que se lhes dá, nem eu sei… Este Esgueira, com o rancho de filhos, é uma desgraça… Havia Vossa Excelência de ver as casitas em que eles vivem… São chiqueiros. A do Esgueira, acolá, ao pé da figueira.

— Vamos ver

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